UM ANO DE ODORES


Até da pedra se extrai o encanto do perfume rugoso, das manchas licorosas que o tempo bafejou e lhe contou anos, do arredondado do cheiro que as mãos libertam na rocha trabalhada a noites e desenhos de outros castelos que se amontoam sem alicerces que não o sonho. Cheirar. Cheirar os sonhos, nada ver, apenas sabê-los a libertar o seu veneno...

GIESTAS



As giestas hão-de voltar, sei que sim, até podem demorar um pouco mais por causa dos frios, mas sei que estão dentro de si, protegidas, à espera dos seus dias. Primeiro os botões, duros, enrolados, depois o aroma orvalhado pela madrugada a entrar pelos campos fora numa correría que deixa doidos os mais novos. As giestas hão-de voltar sim, e o perfume delas há-de lembrar até chegarem sempre e todos os anos mesmo que tardem, hão-de voltar como tu hás-de regressar. Não importa quando, tão pouco importa se vens com o tempo das giestas, ou se as giestas se encolhem nesse dia e resolvem não aparecer mais. Mas tu vens, sei que me hás-de deixar doida como os tempos antigos em que as giestas eram do nosso tempo.

EU SOU DAQUI



As manhãs têm um perfume tão intenso. Deve ser porque estiveram toda a noite a descansar e quando acordam para o dia se exibem garbosas do seu cheiro caracteristico.

Aquela manhã não era diferente. Era o contraste de uma noite de essências misturadas entre o fabricado, o fumo de tabaco, os cheiros dos homens e das mulheres. À beira-mar, lisa de águas que havíam fugido para outro oceano restava o pico dolorido do iodo. Entrava pelas narinas sem pedir permissão, alagava-se pelos pulmões, sentía-se à vontade para trazer as recordações à luz do dia.

Ela ficou calada, deixou que o ar húmido lhe engelhasse o vestido de noite e os cabelos. Naquela manhã só interessava ver-se como criança a empilhar baldes de areia molhada e a construír castelos em que inventava princessas aflitas à espera que o cavaleiro a salvasse do dragão.

Inspirou longa, fortemente. Virou costas e trouxe no olfacto um bocadinho do que já fora.

MAGIAS


E o que é isso?
Uma garrafa.
Isso sei eu. E depois?
Uma garrafa especial que depois de destapada liberta cheiros maravilhosos.
Ah! De perfume?
Não.
Não?
Cheiros de outros tempos.
Então cheira a velho.
Não, cheira a recordações.

PRIMAVERA


Apontou o queixo, o nariz guiado pelo instinto.
Cheira a morno. E a abelhas, e a pequenos troços verdes que borbulham nos galhos e também a fetos que se desenrolam vagarosamente sob a luz do meio-dia, a gotas de suor na cova do pescoço e detrás das orelhas depois de correr de braços abertos sentindo o ar a tomar-lhe os sentidos como uma bebedeira que esperou pelo momento certo para toldar o racional, jurar que as andorinhas eram as mesmas de há muitos anos e todo o sol não passava de um guache amarelo que aguou incontrolável até onde os olhos podem alcançar.

MUNDO DE ODORES



Entrar sem autorização era o menos. O gosto que a fazía salivar eram os aromas -para ela intimos, secretos- daquele universo no masculino que a entontecía de tantas perguntas, uma curiosidade obssessiva, cheiro de homem, cheiros verticais chamava-lhe. Eram os couros do sofá, da pasta surrada, da agenda de bordos envelhecidos, do cognac dormente e fogoso, o aroma a cascas de árvore a saír da cigarreira, a cera adocicada da secretária macia no sitio onde pousam os braços da escrita, o lenço, a gravata, o roupão todos embebidos de uma alfazema macerada pelo odor do corpo, o perfume dos livros e ainda o das mãos ausentes nos instantes que ladra roubou ao mundo dele para encher o seu.

Fechou a porta devagarinho e saíu feliz.

ACRE


Cobriu o rosto.
Cheirava-lhe a medo.

CHEIRO DE SAUDADES


A saudade cheira a árvores molhadas pelo nevoeiro que acorda a madrugada, a musgos cinzentos e húmidos que escondem rebentos que dormem, a raízes cravadas no coração da terra.

AROMAS DO TEMPO


Em Janeiro chegaram a vez das laranjas gordas, reboludas, de casca irregular como poros da pele, um circulo num dos polos, muito sumarentas e doces como mel.
Golpeou-a na metade, contou-lhe os gomos, doze disse, um cheiro por cada mês do ano, assim o perfume do tempo nunca te esquecerá, lembrarás das laranjas como sol que perfuma os dias longos e os dias pequenos, mesmo que seja noite e que o cinzento achumbe o céu. Serão doces recordações, sentires de infância que se imprimem até ao Janeiro da idade crescida.